Wednesday, February 16, 2011

As Enchentes, os Resíduos Sólidos e as Medidas "Não-Estruturais"

Essa reportagem é do ano passado. Só que é atual, por isso estou colocando aqui no blog. A situação infelizmente não mudou de um ano pra cá.

Os 400.000 bueiros da cidade e as galerias pluviais não vencem escoar as águas pluviais devido à grande quantidade de lixo que é arrastada para o sistema durante as chuvas. É computador, sofá, televisão, bola de futebol. Tem de tudo. Confira no vídeo o caminho que o lixo faz e como isso influencia a ocorrência de enchentes.




Há a questão da conscientização do cidadão, mas certamente o problema não é só esse. Enquanto o governo continuar apostando em obras estruturais tradicionais (canalizações, piscinões, dragagem dos cursos d'água) para a resolução dos problemas, ao invés de investir em outro tipo de medidas preventivas/corretivas, continuaremos tendo enchentes na proporção que temos hoje. Mesmo que as pessoas parem de jogar lixo na rua.

O que seriam medidas preventivas/corretivas? Eu não gosto muito do termo "medidas não-estruturais" (acho que tínhamos que inventar um termo melhor, que não seja a negação de outro termo, mas algo que se sustente por si mesmo), mas assim são chamadas as medidas para prevenir/atenuar/corrigir os impactos e prejuízos causados por enchentes sem realizar grandes obras a custos altos. Tais medidas possuem custos menores, porém requerem uma mudança de paradigma: a adaptação às inundações urbanas ao invés de sua negação através da insistência em um modelo de transposição do excesso de águas pluviais para a jusante.

Entre as medidas não-estruturais mais relevantes considero:

- a implantação de parques lineares de auto-desempenho que ofereçam: um sistema de áreas de lazer, posibilidade de mobilidade transversal e longitudinal de pedestres e veículos leves e sua conectividade com demais áreas verdes da cidade, corredor ecológico contínuo de flora e fauna, sistemas filtrantes para a melhora da qualidade da água, sistema de drenagem eficiente com proteção/aumento de áreas permeáveis;

- a criação de programas de conscientização da população sobre medidas para evitar sobrecarregar a rede de drenagem; explicação do funcionamento do ciclo da água no meio urbano e sua relação com a bacia;

- a adoção de tipologiais de infra-estrutura verde por toda a cidade tais como os jardins de chuva, as biovaletas, as lagoas pluviais, os dispositivos para captura de resíduos sólidos e as superfícies drenantes/permeáveis que desempenhem serviços ambientais semelhantes aos processos ocorridos na natureza dentro do ambiente urbano. Os benefícios envolvem não apenas um manejo efetivo e de relativo baixo-custo das águas pluviais, mas uma série de outros benefícios, tais como a regulação do micro-clima urbano, a melhora da qualidade da água, o embelezamento da paisagem, o amortecimento de ruídos, entre outros;

- a adoção de políticas de gestão e uso do solos: os zoneamentos devem proibir ocupações inadequadas em zonas de risco; prefeituras devem ter instrumentos para adquirir áreas importantes para a drenagem urbana e estratégias para garantir que os usos em tais áreas não entrem em conflito com o manejo das águas pluviais; a regulamentação de uso do solo em áreas de risco deve ser estudada, para a atenuação do impacto de ocupações irregulares;

- a criação de centrais de informação sobre a previsão de enchentes, os pontos de alagamentos, recomendações de conduta, planos de evacuação de áreas e adoção de medidas de auxílio e recuperação de famílias e áreas afetadas por eventos;

- a manutenção dos sistemas de drenagem tradicionais existentes: limpeza de bocas de lobo, galerias e bueiros para que a água possa escoar sem problemas; dragagem de rios para a retirada de sedimentos;

- o controle do escoamento de águas pluviais nos lotes; garantia de que construções não piorarão as circunstâncias de drenagem vigentes antes da ocupação; incentivos financeiros para lotes com soluções de drenagem eficientes;

- a adoção de soluções arquitetônicas e de engenharia à prova de inundações em edifícios e áreas suscetíveis;

- o provimento de sinalização e rotas de tráfego alternativas para que os motoristas saibam como proceder em casos emergenciais de enchentes;

- seguro contra inundações.

As enchentes não são necessariamente sinônimo de catástrofe. Trata-se de um fenômeno natural, principalmente num território como o do município de São Paulo, onde uma grande quantidade de cursos d'água (1500 quilômetros lineares) e os tipos de rochas e o relevo configuram literalmente uma "cidade das águas" --- o termo virou o título do livro de Saide Kahtouni, no qual a autora discute as relações entre o processo de urbanização e a paisagem urbana.

Além disso, São Paulo é conhecida como a "terra da garoa". No verão são no entanto as chuvas intensas que castigam a capital, e não uma simples garoa, levando com freqüência à ocorrência de enchentes.

Todo regime fluvial possui uma época de cheia, porém enchentes tornam-se um problema em territórios urbanizados sem planejamento. A ocupação urbana do leito maior (e até o leito menor) do rio, rouba-lhe a área natural de transbordamento, suprimindo a vegetação nativa, mudando o perfil das encostas, impermeabilizando o solo e aterrando as várzeas. Além disso a urbanização é responsável pela produção de sedimentos e de resíduos sólidos, o que tornam rios lentos e de baixa declividade como os de São Paulo ainda mais lentos e suscetíveis a transbordamentos.

Para atenuar os efeitos negativos das enchentes em São Paulo, é necessário seguir uma agenda política coordenada que esteja baseada na adoção de medidas não-estruturais. Estas medidas devem ser integradas ao desenvolvimento de medidas estruturais* numa proporção diferente da qual têm sido realizada. Enquanto a balança dos investimentos públicos pesar tanto para o lado das medidas estruturais, continuaremos vendo os mesmos noticiários durante o verão sobre a perda de vidas por causa de enchentes.

*A adoção de medidas estruturais consiste essencialmente na execução de obras de engenharia hidráulica de grande porte para o controle e redução de risco de enchentes: reservatórios de retenção (piscinões), canalizações de córregos, diques, barragens, represas, etc.

Monday, February 7, 2011

Os rios foram asfaltados



Imagem: Marginal Tietê, 2009
Fonte: Wikimedia Commons (http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Marginal_Tietê_¹²³.jpg)
Autor da imagem: Lukaaz - Marcelo



Eu ainda quero escrever um artigo próprio sobre o assunto. Mas ainda não vai ser dessa vez. Então posto aqui mais um que acho que vale a pena ser lido. O artigo é da coluna "Isso não é normal!" do Estadão, de Junho de 2010. (Embora eu não compartilhe das "teorias da moda" sobre aquecimento global e colocações como estas "As mudanças climáticas já começaram e já estão atingindo o Brasil" soem completamente infundadas aos meus ouvidos, acho que o "delírio do aquecimento global" serviu de pontapé para despertar uma série de discussões que estavam em banho-maria. A definição de ilhas de calor usada no artigo não é propriamente precisa. Para quem quer saber melhor o que é uma ilha de calor, esse link explica).

O artigo foi originalmente publicado aqui. Vale a pena visitar o site original pelos mapas interativos (planta da área central de São Paulo com comparações antes e depois e uma planta antiga da cidade (1924) sobre a qual é possível navegar e conferir a grande quantidade de cursos de água que a cidade possuía quando tinha menos de 1 milhão de habitantes).

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São Paulo fica bem na cabeceira da bacia do Tietê. Cabeceira é a beirada da bacia, onde a chuva cai e escorre para dentro. A parede externa da bacia é a Serra do Mar, que bloqueia as nuvens úmidas vindas do Atlântico, e por isso é um dos pontos mais úmidos do Brasil. O lugar onde está São Paulo é onde essas nuvens descarregam toda a água tirada do mar. Por causa disso, a região era cortada por centenas de rios, riachos, córregos, que apanhavam essa aguaceira e a empurravam para o interior, rumo ao rio Paraná. Se você mora em São Paulo, não importa qual bairro, é certeza que um riacho corria pertinho da sua casa. Mas provavelmente não corre mais. Os riachos de São Paulo hoje estão quase todos dentro de canos, debaixo do asfalto.

A cidade começou sua história longe da água, na colina entre o rio Tamanduateí e o Anhangabaú – ninguém queria ficar perto d'água, dos mosquitos e dos atoleiros. Quando começou a crescer, a cidade foi pelos altos dos morros, longe dos rios. Avançou morro acima até onde hoje é a Avenida Paulista e se espalhou pela crista da montanha, onde hoje ficam a Avenida Doutor Arnaldo, a Heitor Penteado, a Rua Vergueiro.

Dê uma olhada neste mapa aí abaixo. Ele é de 1924, quando a cidade não tinha nem 1 milhão de habitantes (quatro anos antes, o censo de 1920 registrou 579.033 paulistanos). Note como a cidade é toda cortada por uma infinidade de linhas azuis. Eram 1.500 quilômetros de cursos d'água. Note também como as ruas da cidade geralmente não atravessavam os riachos. Corriam ao lado deles, mais para o alto dos morros, no seco. Se você mora em São Paulo, é quase certo que um rio já correu perto da sua casa – encontre o seu.


Para ver o mapa, clique aqui.


Mas isso foi bem no começo do crescimento explosivo da população, um dos maiores da história da humanidade. A população paulistana quase dobrava a cada década. Com isso, os rios foram sendo cobertos de asfalto. Por lei, já era proibido construir a menos de 10 metros de um riacho, mas essa lei nunca foi respeitada. Prova disso é que até Câmara Municipal da cidade fica bem em cima de um rio, o Bexiga. Esse processo se acelerou durante a ditadura militar, que radicalizou a opção pelo automóvel e construiu avenidas em quase todos os fundos de vale. Nas áreas de várzeas, os rios antes curvos ficaram retos e o asfalto chegou até a beirada deles. Carros precisam fluir rápido – por isso o melhor é ter asfalto bem lisinho. Já a água é melhor que corra devagar – o asfalto liso é um convite às enchentes (o ideal seria adotar superfícies rugosas).

Quando chove forte – mais de 100 mm num dia – água desce velozmente as regiões íngremes das cabeceiras, que geralmente são bairros pobres da periferia. No caminho vai arrastando casas, esmagando gente nos escombros. Quando chega nas regiões mais baixas, as antigas várzeas, levam um monte de terra, que vai assoreando tudo. É nesses lugares que a água se acumula, causando enchentes.

A rigor, portanto, não há enchentes em São Paulo – nós é que construímos a cidade em cima dos rios. E a situação vai piorar. Com as mudanças climáticas, a tendência é que chuvas fortes fiquem cada vez mais comuns – em São Paulo espera-se invernos mais secos (e poluídos) e verões mais molhados (e cheios de enchentes). São Paulo vai ter que descobrir maneiras de absorver essa água. Até hoje, apostou em construir "piscinões", que são imensas catedrais subterrâneas para acumular água (e lixo, e ratos).

Atualmente, há uma tendência de tentar buscar soluções mais "naturais" para escoar água. A prefeitura de São Paulo tem apostado em construir "parques lineares" – que são áreas verdes preservadas ao redor do rio. Além da vantagem óbvia – novas áreas de lazer – a terra das margens absorve parte da água e o rio aberto diminui a velocidade da enxurrada. Isso também diminui a temperatura do ar logo acima, reduzindo as chamadas "ilhas de calor", que são bolhas de ar aquecido pelo asfalto, que se chocam com o ar frio e úmido vindo do oceano e provocam grandes tempestades. "Estamos focando primeiro em fazer parques lineares nas cabeceiras urbanas – Aricanduva, Cantareira –, que é de onde toda a água vem", diz a arquiteta Alejandra Maria Devecchi, diretora de Planejamento Ambiental da Prefeitura. "E queremos garantir que os rios que restaram, em outras áreas da cidade, não sejam cobertos".

Há quem proponha que a solução da "renaturalização" seja adotada na cidade inteira. O engenheiro Sadalla Domingo, pesquisador da USP e funcionário da agência reguladora de saneamento e esgotos do Estado, tem um projeto para renaturalizar o rio Anhangabaú, em vez de construir um novo piscinão lá. "É muito mais barato e mais eficaz, além de poupar a cidade de ter que gastar para sempre limpando o piscinão".

Sadalla acredita que a cidade está cheia de oportunidades desse tipo. Ele nos levou para passear pelo bairro da Pompéia e mostrou vários pontos onde pracinhas podem virar laguinhos e becos abandonados podem se tornar riachos margeados por ciclovias. "Acho que todos os riachos da cidade podem ser pelo menos parcialmente abertos", diz. Não vai ser de uma hora para a outra. "Não é fácil concretizar esses projetos", diz Alejandra, da prefeitura. "A Secretaria de Obras nos diz 'não sabemos fazer assim'. É um jeito novo de pensar".

Mas é o futuro.